Pesquisadores da Fiocruz fizeram um estudo histórico sobre o óleo de chaulmoogra – produto que, até a década de 40 do século 20, representou a grande esperança nas tentativas de cura da hanseníase, doença que, naquela época, ainda era chamada de lepra. As chaulmoogras são plantas tropicais cujas sementes fornecem um óleo usado há séculos, na Ásia, para o tratamento de doenças de pele. O trabalho, publicado no periódico História, Ciências, Saúde – Manguinhos, analisa como o óleo de chaulmoogra foi incorporado ao conhecimento científico ocidental, destacando a participação do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) nesse processo, sobretudo a partir da década de 20.
“O primeiro relato do uso desse óleo advém da tradição oral dos povos hindus que contam a lenda de um rei de Burma. Ao ficar leproso, o rei abandonou o trono e escondeu-se na floresta, onde se curou comendo as sementes do fruto de kalaw – nome dado pelos birmanenses e siameses para a chaulmoogra Taraktogenos kurzii”, dizem no artigo os historiadores Fernando Dumas e Letícia Pumar e o químico Antonio Siani. Desde o século 6, as chaulmoogras já eram citadas em importantes compêndios, como a farmacopéia chinesa Pê-ts’ao-kang-mu (1552-1578) e o dicionário médico árabe Makhzan-al-Aswiya (1771). Contudo, foram a quarta edição da British pharmacopoeia e a primeira edição da Farmacopea venezolana (1898) que marcaram a inclusão das chaulmoogras nas farmacopéias de países ocidentais.
“Quando o uso do óleo de chaulmoogra para o tratamento de doenças de pele se tornou conhecido entre os cientistas e médicos ocidentais, a ação terapêutica desse óleo passou a ser verificada nos laboratórios e clínicas, dando início ao processo que culminou na sua integração às normas impostas pela terapêutica de estilo ocidental”, explicam os pesquisadores no artigo. “Isto ocorreu por volta da metade do século 19, época em que o Império Britânico explorava, por meio do estabelecimento das instituições médicas na Índia, o potencial das tradições locais de uso de plantas medicinais, buscando consolidar esses conhecimentos em farmacopéias e práticas que pudessem ser utilizadas pelos médicos britânicos instalados naquelas áreas de colonização”.
Em outras palavras, o saber indiano em relação às chaulmoogras foi incorporado ao modelo científico ocidental, passando a ser alvo de investigações sistemáticas que resultavam na publicação de artigos técnicos. Logo, de produto vegetal aplicado pela população indiana, o óleo de chaulmoogra se transformou em medicamento produzido nos laboratórios farmacêuticos ocidentais. Esse medicamento era, inicialmente, de uso externo. Porém, em seguida, foram desenvolvidas pílulas e injeções, com o objetivo de aumentar a eficácia do tratamento, embora este fosse doloroso.
O objetivo dos pesquisadores, no entanto, não é julgar o valor terapêutico do óleo de chaulmoogra, mas destacar o papel que ele teve, durante décadas, no enfrentamento da hanseníase, inclusive no Brasil. No país, a partir da década de 20, o IOC foi um importante local de produção do óleo de chaulmoogra e seus derivados, bem como de pesquisa e ensino da terapêutica baseada nesses produtos.
Na Seção de Química Aplicada eram produzidos o óleo e seus derivados, fornecidos, por exemplo, para o Departamento Nacional de Saúde Pública, a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas, o Serviço Sanitário de São Paulo, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a Secretaria de Saúde Pública de Minas Gerais. Encomendas eram feitas também por laboratórios particulares.
Além da Seção de Química Aplicada, o Laboratório de Leprologia, inaugurado em 1927, sob a chefia de Souza Araújo, também fazia trabalhos científicos sobre o óleo de chaulmoogra e seus derivados. Os medicamentos produzidos eram experimentados em pacientes e distribuídos gratuitamente para o Hospital dos Lázaros do Rio de Janeiro e para leprosários do Paraná, Pará e Acre.
No relatório de atividades do IOC de 1926, o célebre cientista Carlos Chagas informava que a instituição havia produzido quase 23 mil doses de ésteres de óleo de chaulmoogra. Na mesma época, o IOC começava a preparar e testar o óleo de Carpotroche brasiliensis, espécie considerada a chaulmoogra brasileira.
Entretanto, “os esforços de pesquisa envidados no sentido de aperfeiçoar o tratamento da lepra utilizando-se os derivados das chaulmoogras não foram suficientes para construir sua aceitação inequívoca entre os médicos”, destacam os autores no artigo. “Os efeitos colaterais desse tipo de terapêutica criavam muitos problemas. Além disso, era um tratamento muito longo e com uma efetividade questionável, pois não havia consenso acerca das reais possibilidades de cura. Muitos médicos e pesquisadores consideravam os derivados de chaulmoogra apenas como medicamentos paliativos”, acrescentam.
Assim, na década de 40, o óleo de chaulmoogra e seus derivados são substituídos, no tratamento da hanseníase, pelas sulfonas, oriundas da química sintética. “No Brasil, o óleo ainda foi utilizado por mais alguns anos, porém a introdução das sulfonas permitia a transformação da política de isolamento dos doentes, os quais poderiam ser tratados apenas com visitas ambulatoriais”, sublinham os autores no artigo. Ou seja: as sulfonas aparecem não só como um medicamento mais eficiente, mas possibilitam uma prática contrária ao isolamento dos pacientes nos leprosários. “Em 1962, o decreto 968, de 7 de maio, pôs fim ao isolamento obrigatório dos doentes no Brasil. No entanto, o Departamento de Profilaxia de São Paulo continuou isolando portadores da doença até 1967”, lembram.
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